A faculdade de reter e recordar aquilo se experimentou na vida pode ser liberdade ou prisão. A depender de como essas memórias surgem e o que elas deixaram um tempo que se foi. Essa pode ser uma ideia interessante ao tratar da narrativa do livro A Máquina de Fazer Espanhóis, do escritor Valter Hugo Mãe.
O autor traz características que se assemelham ao estilo literário do também português José Saramago. Texto direto, pouca pontuação e diálogos inseridos no meio da narrativa. Além da reflexão direta em vários trechos.
As reminiscências do Seu Silva, um idoso de 84 anos que passa a residir em um abrigo depois da morte da esposa, trazem a discussão da reflexão indubitável sobre a vida quando ela se aproxima do final.
O discurso do bom homem, mas que se torna impiedoso quando necessário. A relação fria e distante com os filhos e as memórias de afeto cultivadas apenas pela esposa que o deixou.
A autoanálise de uma trajetória dedicada à família que perpassa por discussões que envolvem a vida em Portugal a partir do contexto da ditadura de Salazar e a forma individual que cada um dos idosos pôde recordar desse período.
Em uma das reflexões sobre crenças, o Senhor Pereira, um dos personagens do abrigo, diz que “quem fomos há de sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas”.
Mas, como citei no início do texto, as memórias podem aprisionar. Quem convive com a culpa, vive preso ao passado e, segundo o próprio Silva diz no texto, seria mais fácil ter a memória de peixe, a “memória de três segundos”, onde é possível admirar-se e viver em plenitude o momento, que já não é novo mas assim o parece aos seus olhos.
Entretanto, como a memória pode compensar a solidão, ela não permite que a história se apague. É aquilo que fica como recordação e que assume o valor de permanência da vida.